Nova Mutum: Passado, Presente e Futuro
- Elizangela M. Ottonelli
- 2 de jan. de 2021
- 7 min de leitura
O artigo que publico aqui na íntegra, foi escrito para a Edição 47 de dezembro de 2020 da Revista Portal Live (Edição Especial Adriano Pivetta, uma vida dedicada a Nova Mutum!), onde foi publicado parcialmente.

Toda paisagem urbana conta uma história através de seu traçado, arquitetura, formas, natureza e monumentos. Mas só será capaz de ler esta narrativa quem souber minimamente qual era o contexto histórico e cultural no momento da construção dos elementos que a compõem, qual foi a realidade enfrentada e as motivações para a sua construção, qual era a sua finalidade e por que teve essas configurações. Sem este conhecimento prévio, mesmo o monumento mais didático e significativo deixa de ser um símbolo que mantém viva a memória, e se torna apenas um objeto.
Alguém que chega hoje em Nova Mutum vê uma cidade próspera, bonita, em franco crescimento, e com muita coisa ainda a ser construída. Porém, se este alguém não conhece a história de fundação e desenvolvimento da cidade, corre o risco de tecer críticas injustas e infundadas em relação a tudo o que foi feito até aqui. A perda da memória, seja ela individual ou coletiva, é um dos fenômenos mais trágicos das sociedades pós-modernas. Uma sociedade sem memória caminha desnorteada, pois não conhece seu passado, não tem consciência em seu presente, e não projeta perspectiva no futuro (COSTA,2007)¹.

A cidade de Nova Mutum, bem como outras cidades do centro-norte matogrossense ao longo da BR-163 (Cuiabá-Santarém), surgiu em um contexto de políticas nacionais que estimulavam a ocupação do Centro-Oeste brasileiro como estratégia de desenvolvimento econômico, segurança nacional e reforma agrária. O paulista José Aparecido Ribeiro, liderando o grupo Mutum Agropecuária S/A, elaborou um projeto para desenvolvimento de atividade agropecuária na vasta área adquirida no município de Diamantino, no ano de 1966. Ele e sua esposa, Hilda Strenger Ribeiro, formam o casal que vemos representado no monumento “Colonizadores de Nova Mutum”².
O projeto consistia em dois grandes núcleos (Arinos e Mutum) para cria, recria e engorda de gado, mas devido à grande extensão de terras viu-se a possibilidade de gerar oportunidade para novos pioneiros através de um projeto de colonização privada. No início da década de 1970, as fazendas Ranchão e Uirapuru já haviam sido iniciadas em regiões próximas a fazenda Mutum, lideradas respectivamente por Alcindo Uggeri e José Maria Nogueira com o auxílio de seu gerente, Vicente Paulino Barreiros. Mas foi depois de desenvolver com sucesso alguns experimentos com grãos, constatando a viabilidade da agricultura na região, que o Grupo Mutum iniciou a venda de lotes que variavam entre 150 e 400 ha (SCHAEFER, 2003)³.
Entre as cidades que surgiram neste mesmo cenário – de desenvolvimento do agronegócio e ocupação no norte do estado de Mato Grosso através de empresas colonizadoras e em decorrência de ações do Plano de Integração Nacional –, algumas aconteceram de modo improvisado, como meio de criar uma rede de apoio às necessidades imediatas de bens e serviços das populações que chegavam para se instalar no campo, outras se consolidaram a partir de pequenos núcleos com características urbanas, que foram planejados e abertos como atrativos suplementares aos colonos (BARCELOS, 2014). Nova Mutum se enquadra no segundo caso.

Em 1978, foram destacados 551 ha para a implantação do núcleo urbano, cujo projeto foi desenvolvido pelo engenheiro agrônomo Luiz Carlos Ferreira Bernardes, na época diretor da empresa de planejamento de irrigação e drenagem, Esplanid Ltda. A Mutum Agropecuária S.A. criou a infraestrutura necessária para o início da ocupação, como pontes, estradas, usina hidroelétrica, rede elétrica e rede de abastecimento de água. No núcleo urbano a empresa construiu as primeiras casas para acolher os primeiros pioneiros, posto de saúde, escola e alojamento (SCHAEFER, 2003). As primeiras ocupações se deram no entorno da Avenida Mutum, e como forma de incentivar a ocupação do núcleo urbano a empresa colonizadora bonificava com 2 (dois) terrenos urbanos a quem adquirisse um lote rural.
“Os três membros da família Krauspenhar [Walter, Dulce e Jeison] foram os primeiros moradores da vila. E eles encontraram um lugar onde faltava quase tudo. “Não tinha nada. Única coisa que tinha era uma estradinha aberta para baixo, onde estavam construindo as primeiras 10 casinhas da cidade. Estava tudo sendo construído ainda, o posto de saúde, a escola, o centro comunitário.” Além disso, a energia era só por gerador e água tratada não tinha. Se alguém quisesse puxar água para as casas tinha que ir até um poço que era perto do Bujuizinho.” (TISSIANI, p.46)
O projeto urbano propunha um traçado ortogonal em malha fechada e avenidas com grandes canteiros centrais, a ser implantado às margens da BR-163, era composto inicialmente por 116 quadras (110 quadras divididas em 22 lotes e 6 quadras divididas em 10 lotes, totalizando 2.480 lotes urbanos de 1.000m² cada), 65 lotes que se destinavam à área comunitária, 11 praças, cemitério, áreas verdes, aeródromo e duas áreas de reserva técnica que posteriormente foram loteadas pela empresa colonizadora.
Para uma mentalidade imediatista e com preocupações apenas de curto prazo, pareceria um desperdício de energia fazer um plano tão grande para a realidade daquele momento, mas foi graças à visão de longo prazo dos idealizadores de Nova Mutum que temos a cidade que temos hoje. O centro e os bairros que mantém as características do projeto inicial continuam sendo os melhores bairros de Nova Mutum, pois o planejamento inicial permitiu o desenvolvimento urbano ordenado e com fartura em áreas verdes comunitárias, sendo essa a característica mais marcante da paisagem urbana de Nova Mutum.

Segundo o Plano Diretor do Município de Nova Mutum, publicado em 2015, no projeto urbano original eram desconsiderados aspectos importantes como a topografia e a hidrografia local, como exemplo dessa negligência em relação às características biofísicas do território é citada a ausência do córrego Bujuizinho no documento original, córrego este que é uma referência significativa na paisagem pois é um curso d’água que corta toda a extensão do perímetro urbano.
Entretanto, segundo informações obtidas na entrevista concedida, em 2018, por Luiz Divino da Silva, gerente da JAR Empreendimentos Imobiliários, o engenheiro responsável pelo projeto do núcleo urbano de Nova Mutum teria escolhido o local de implantação da cidade justamente pela presença de um córrego que serviria como uma calha para o escoamento da água da chuva. Esta informação está documentada na Planta de Loteamento de Subdivisão de Chácaras, que apresenta o projeto urbanístico com o córrego Bujuizinho canalizado e a área de entorno do córrego loteada.
De qualquer forma, considerado ou não no projeto, já no ano de 1986, aparece um relato sobre o córrego no diário do vigário da região, pe. José Renato Schaefer, indicando a preocupação em relação às consequências geradas pelas alterações realizadas no seu entorno:
“Acabei de entrar na casa nova no meio do cerrado. Não tem luz, mas já comprei um liquinho a gás e a água é puxada de um poço na baixada onde tem uma bomba. Vamos ver se isso funciona. O aspecto da água não me parece muito bonito, tem uma camada de “coisa” por cima que não sei o que é (ferrugem). Aqui é um sossego absoluto. De manhã cedo vejo as pegadas de antas e veados que transitam ao redor da casa e descem em direção ao córrego para tomar água. Este córrego tem água corrente até na seca, mas duvido que fique assim por muito tempo, pois as enxurradas das chuvas carregam muita areia, assoreando o leito.” (SCHAEFER, 2003)
Diante dessas informações é possível identificar alguns pensamentos que influenciaram este projeto. Ainda que não se possa afirmar que essas influências tenham sido baseadas em estudos aprofundados em teorias de urbanismo, o pensamento predominante da época aparece claramente na cidade. Um exemplo disso é o conceito higienista associado à drenagem urbana (captação, condução e a descarga rápida de efluentes) que previa a utilização do córrego Bujiuzinho como único canal de descarga rápida das águas pluviais. Essa característica teve impactos significativos no decorrer do crescimento urbano e, entre erros e acertos, resultou no que conhecemos hoje como a região dos lagos. O lago do semeador hoje é um excelente exemplo de paisagem multifuncional: uma infraestrutura de retenção de águas pluviais, somada a um projeto de arborização e implantação de infraestrutura de lazer.
É possível perceber também, em certa medida, a influência das cidades-jardim de Ebenezer Howard desde a idealização da colonização até o projeto urbano. O plano de colonização de Nova Mutum, e de outras cidades que surgiram da mesma maneira, utilizou a lógica dos ímãs de atração de Howard, criando condições de produção, trabalho e moradia com infra-estrutura em meio a natureza ainda inexplorada. Unindo a beleza natural do campo com as oportunidades sociais da cidade, facilitando o acesso a áreas de cultivo e criando uma comunidade onde os moradores poderiam desenvolver atividades comerciais. Vê-se também esta influência na forma do núcleo urbano, cortado por bulevares, com os órgãos públicos no centro e rodeada por um cinturão verde de chácaras (OTTONELLI, 2020).

A organização da malha urbana ortogonal em forma de tabuleiro, com vias largas, avenidas com generosos canteiros gramados e praças rotatórias, somada a própria característica do terreno, que por ser predominantemente plano não impõe grandes desafios que forçam o desvio da malha ou a verticalização, facilitou a expansão horizontal da cidade. A única limitação natural imposta pelo sítio era o córrego Bujuizinho, mas sendo um pequeno curso d’água não suscitou grandes dificuldades.

Por outro lado, a rodovia BR 163 configura uma grande barreira física para a expansão urbana, por isso a tendência de crescimento da cidade seguiu sentido noroeste e ao longo da rodovia. Além das expansões do perímetro urbano demonstradas no infográfico, tivemos ainda outras duas ampliações, em 2015 com a conclusão do Plano Diretor Municipal de Nova Mutum, e em 2019 para viabilizar a implantação das indústrias de etanol de milho.
Quem te viu, quem te vê, Nova Mutum! A semente “caiu em terra boa e deu fruto, cresceu e desenvolveu-se; um grão rendeu trinta, outro sessenta e outro cem”. Crescemos tanto em tão pouco tempo, que para quem está de fora pode até parecer mágica, mas quem viu tudo sabe que foi muito trabalho duro, coragem e fé. Hoje temos algumas questões urbanas importantes a resolver e planejar, pois a cada passo novos desafios se apresentam, cabe agora a todos nós (administração pública, iniciativa privada e todos os cidadãos), conhecendo o passado e respeitando o presente, planejar e construir um futuro ainda melhor para nossa querida cidade.

2- O monumento a que me refiro chama-se, na verdade, "O fundador pioneiro". (Figura1)
3- SCHAEFER, José Renato. Nova Mutum: História e fundação. Nova Mutum: Mutum Editora, 2003.
4- BARCELOS, Vicente. Sete novas cidades de Mato Grosso. PAISAGEM E AMBIENTE: ENSAIOS - N. 34. Pag. 61 - 80. São Paulo -SP. 2014.
5- Relato de Dulce Krauspenhar presente no livro “Conquistas da Coragem: Uma migração que deu certo” de autoria de Taisa Pivetta Tissiani.
6- Infraestrutura azul e verde: Solução de drenagem para a cidade de Nova Mutum-MT/ Elizangela Maria Ottonelli. - Rio de Janeiro: PROURB/UFRJ, 2020.
7- Parábola do semeador presente no Evangelho de São Marcos, cap. 4, vers. 1-20.
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